SCHLANGE
Luiza Baldan
Como começar um texto numa língua que não conheço? Calma, esqueci que agora escrevo em português, a língua materna. Minha filha chegou da escola ontem a dizer que não fala português, que fala bra-si-lei-ro. Aparentemente, agora sou uma i-migrante, i-gnorante, que ensina errado a língua mãe para a própria filha.
Preferiria mil vezes falar brasileiro, mas de uma forma ou de outra, o idioma que aprendi foi o português no Brasil, e como é lindo. Diferente do português europeu, o nosso é entusiasmado. Reinventado à mistura de tantas línguas engolidas, deglutidas, eliminadas. É violento e vivo. Teria muitas razões para ter vergonha do nosso português, mas não tenho. Sinto orgulho dessa língua plural. Língua do país da cobra grande, “dos filhos do sol, mãe de viventes. Encontrados e amados ferozmente, com toda a hypocrisia da saudade, pelos imigrados, pelos traficados e pelos touristes.”
Escapei de Berlim rumo a Lisboa para sentir o amparo da língua. Na primeira semana na cidade lusa, a minha filha brinca sozinha numa pracinha onde todos parecem compartilhar do mesmo idioma. Ela se aproxima de uma menina com quem quer brincar. A criança não contesta e a minha insiste. Não dizem nada uma a outra, apenas brincam. Existe uma linguagem de corpo entre elas que dispensa palavras. Pergunto à garotinha como ela se chama. Silêncio. A mãe vem me explicar, em inglês, que não falam português, que são de Berlim.
Morei em Berlim durante dois anos e fui embora sem conseguir falar alemão, sem me integrar à cultura nem pertencer à comunidade. Em meu semi-analfabetismo e na busca incessante por uma casa não-temporária, não-mobiliada, não-inflacionada, descobri um conjunto habitacional destinado ao aluguel social, popularmente conhecido como Schlange que, em português, significa “cobra”. O edifício, por diversas razões, se assemelha a outros por onde passei, mas todos estavam no Brasil e falavam português. Mesmo assim, quis me aproximar do prédio que deu origem a um túnel. Quem sabe, no encontro entre o deslocamento e a permanência de uma rodovia com apartamentos, eu consiga me entender melhor com as pessoas e com a cidade.
Schlange. Sssscccchhhhlllllaaaaannnnnnnggggeee. Sch, o som do chocalho. Lange, longo. Schlange, cobra. Schlangenbader Straße, rua do banho da cobra. Schlangenbad, a cidade do banho da cobra a quase 600 km do Schlange, que mede quase 600 metros.
Minhocão. Minhoca grande. Uma estrutura sinuosa com mais de 300 apartamentos construída sobre a encosta do morro do Pedregulho. O ano era 2009 e foi o primeiro edifício onde morei para trabalhar como artista. Corrijo. Onde fui convidada a morar como artista, mas onde morei como eu mesma e acabei produzindo coisas que podemos chamar de arte, além de convivência e afeto. Dez anos depois, queria fazer algo parecido no Schlange de Berlim, mas a língua me trava, a escassez habitacional também. Não consigo apartamento e não sei puxar assunto com desconhecidos. Não sei entrar em um bar com simpatia para tomar um cafezinho como de costume. Escutei que primeiro vem a desconfiança para depois vir a estranheza. Estranha, estrangeira. Sinto o corpo curvado, travado, tímido. A linguagem do meu corpo é bastante óbvia, é a inconformidade, a incapacidade do encontro. O inquietante, o Unheimlich.
Visito o Schlange muitas vezes. Um dia, na companhia de uma amiga alemã que fala português, uma senhora puxa conversa com a gente, nos abre a porta e nos conduz ao interior da cobra. Imigrante do leste europeu, nos conta que mora no Schlange desde a inauguração em 1980. O ano em que nasci. Uma figura curiosa, interessante e interessada. Entendo parte do que conta, seja pelo meu conhecimento restrito de alemão ou pelo sotaque que desconheço mais ainda. Aceno com a cabeça diante de toda a minha limitação corporal. O esforço para entendê-la e a minha escassez verbal me faz observar mais, desde os detalhes das portas, à decoração dos pequenos corredores adaptados ao longo dos anos, aos jardins particulares, à maneira como a comunidade define seus espaços próprios em um lugar tão impessoal.
Mesmo com muita dificuldade, me aproximo. Levo a filha para brincar no parque da cobra. Assim como eu, ela tem uma câmera de fotos. Não vemos muitas crianças, transitamos, sem percalço, mas com sincero desconforto. O jardim não convida, o brutalismo da arquitetura também não. Não sei se é a pandemia ou a indiferença. A frieza não é só do clima, se é fevereiro ou junho pouco importa. Ainda assim, minha menina escolhe fotografar pequenas coisas que vê pelo caminho. Também decide entrar em uma casinha do parque e preparar um chá de folhas secas pra gente. Inventa uma maneira de se adaptar à inospitalidade que se apresenta. Sentamos ali dentro, teto baixíssimo, mesa e bancos de cimento, tudo muito sujo, incômodo, mas com ela descubro um prazer diminuto em estar. Aprendo com a curiosidade da criança a superar a inflexibilidade do corpo adulto.
Apesar da escala oposta e da distância geográfica, o Schlange me remete ao primeiro lugar onde moramos em Berlim, um conjunto de blocos de apartamentos em Heinersdorf, na parte nordeste da cidade. Ambos estão em áreas de expansão, fora do anel cosmopolita, e estão repletos de moradores idosos e famílias recém-formadas. Em Heinersdorf aprendi a traduzir os bilhetes que uma vizinha atenciosa deixava em nossa porta. Suponho que seja uma vizinha porque nunca soube o seu nome; na assinatura só constava o número de seu apartamento. Junto às mensagens de felicitações pelos feriados, vinham roupinhas para a minha filha e chocolates. Era de uma alegria ímpar saber que alguém, ainda que anônimo, se importava com a nossa presença ali. As más línguas poderiam dizer que era mandinga dela, que os chocolates estariam envenenados. Eu aceitava tudo com prazer e fazia questão de responder às mensagens com o carinho brasileiro que me saía em palavras alemãs provenientes do Deepl.
Sempre que visito o Schlange me imagino morando lá e tenho a certeza de que não quero morar lá. O primeiro conjunto de apartamentos e espaços comerciais mantém a escala baixa do bairro. Entre ele e os demais blocos existe um bom intervalo, uma área de suposto convívio a céu aberto e algum comércio também. Então a cobra vai se erguendo aos poucos, varandas em degraus, de modo que não é possível confrontá-la logo de frente. 46 metros de altura. 1.752 apartamentos, muitos deles sobre um túnel rodoviário de quase um quilômetro de comprimento. Quase um quilômetro de cobra.
Os acessos segmentados por blocos são marcados pelo padrão de cores, o desenho inóspito, duro. Amarelo ovo, azul marinho. As portarias repetidas que só se diferem pelos quadros de aviso. Muitas cadeiras de roda e carrinhos de bebê estacionados. As lâmpadas frias fluorescentes e o isolamento provocado pelo excesso de segurança e proteção contra fogo, som e pessoas. O piso quadriculado na portaria é tal o usado na parede da garagem do Copan. O piso emborrachado preto com bolinhas em alto relevo. Ferros, metais. Tetos baixos, corredores labirínticos. Tudo me faz lembrar datadas instituições públicas com ares industriais. A garagem é quem encosta no túnel e é um dos poucos lugares onde se pode sentir a ritmada batida da velocidade. Ao subir umas quantas rampas, escadas e elevadores, por fim a surpresa das vistas, as varandas avantajadas, a paisagem que ultrapassa os olhos. Vê-se Berlim em perspectivas inesperadas: de um lado os bosques de Grunewald e do outro a cidade engolindo o antigo feudo. A igreja que deu início a toda uma urbanização de casinhas e edifícios baixos, até subir a cobra grande que vai se insinuando aos poucos, traiçoeira, escalonada.
Já pensou morar sobre um túnel?
No Rio de Janeiro existem dois Minhocões: o da Gávea e o do morro do Pedregulho, ambos projetados pelo mesmo arquiteto. As pessoas em geral chamam o primeiro de Minhocão e o segundo de Pedregulho, mas quem mora no Pedregulho também o chama de Minhocão porque o Pedregulho de verdade é um largo ao pé da Mangueira. O Minhocão da Gávea está construído sobre um túnel acústico. A diferença é que o túnel atravessa a montanha onde está o edifício. Já o Schlange é quem deu origem ao túnel. Construíram o prédio sobre uma rodovia amparados pela justificativa da falta de terras habitáveis e por um desejo incontrolável de gastar fortunas para levantar possíveis ícones. Uma utopia um tanto influenciada pelo modernismo da década de 1950 que deu origem aos nossos Minhocões.
O Schlange virou monumento em 2017. Visto pelo lado de fora do túnel, ele mais se parece a um transatlântico, um navio atracado sobre um túnel na rua onde a cobra se banha.
Nunca fui ao Schlange de carro, nunca atravessei a A104, o túnel da Schlangenbader Straße. Túnel que liga duas partes da cidade sem qualquer relação com a minha vida: Steglitz e Wilmersdorf. Praticamente não ando de carro em Berlim. Sempre chego e saio de bicicleta e faço questão de pegar caminhos diversos para entender melhor as dinâmicas dos bairros. Desbravo ruas desconhecidas e recupero a capacidade de sonhar. Ciclistas se cumprimentam com os olhos, sinalizam com as mãos. Em Berlim, somos respeitados e respeitamos o trânsito, na maioria das vezes. A bicicleta é a linguagem que uso para sobreviver à cidade; um meio de locomoção e de reconhecimento entre tantas pessoas.
Me deixo perder para me encontrar na cidade, mesmo sem me reconhecer totalmente. Em uma das voltas pelo Schlange, estico o pedal até o Tiergarten, Altonaerstraße, e encontro pela primeira vez uma série de edifícios que me parecem muito familiares. Estaciono a bicicleta como se sempre frequentasse aquele lugar e percorro os pilotis modernistas sem a menor atadura, como se conhecesse de cor as suas linhas. Procuro no Google Maps e descubro que aquele conjunto habitacional se chama Interbau Apartment House Oscar Niemeyer. Me imagino morando ali e tenho a certeza de que não quero morar ali. Estranho até o que me é muito familiar.
Não foi só no Schlange que não conseguimos casa. Foram dois anos sem endereço permanente, como se fôssemos incapazes ou se não merecêssemos ter um lugar fixo para morar em Berlim. Foi assim que decidimos buscar refúgio na língua. Lisboa nos deu um apartamento no dia seguinte da nossa chegada e nos trouxe novamente a capacidade de sonhar. E assim, a casa passou a ser a linguagem para conviver na cidade outra vez.